Conselho Warao Ojiduna: Organização de indígenas migrantes completa 1 ano, no Pará

  outubro 17, 2023

Uma das primeiras organizações de indígenas refugiados no Brasil, o Conselho Warao representa 13 comunidades de Belém e Ananindeua (PA).

“A organização para nós é muito importante. Se nós estivermos organizados, será mais fácil avançar, já que somos uma equipe, temos um conselho organizado. A nossa luta depende da nossa capacidade de nos organizarmos para lutar pelo bem estar dos nossos irmãos e irmãs”.

A declaração firme de Isneiris Nunez, liderança indígena do povo Warao, resume como tem sido a luta em busca de direitos. Há um ano, lançaram o Conselho Warao Ojiduna, que tem sido porta-voz  das comunidades em Belém e Ananindeua, no Pará, no diálogo com órgãos governamentais, Justiça e movimentos sociais, na defesa de que o Estado brasileiro os reconheça enquanto população indígena para que passem a acessar direitos básicos e políticas públicas específicas de educação, saúde, trabalho e moradia.

Desde 2017, os indígenas Warao passaram a compor a população de comunidades tradicionais no estado do Pará, por conta da migração forçada em massa dessa e de outras etnias.

Migração forçada

No primeiro planejamento estratégico do Conselho, as lideranças Warao constituíram uma linha do tempo da organização do grupo e dos principais avanços alcançados. Estabeleceram como ponto de partida o início da crise econômica na Venezuela, em 2014, o que levou a maioria deles a migrar para outros países e principalmente para o Brasil. Porém, também destacaram que desde muitas décadas, várias famílias Warao já migraram para centros urbanos venezuelanos, em decorrência de problemas ambientais e em busca de melhores condições de vida.

Linha do Tempo construída pelas lideranças do Conselho Warao Ojiduna. Foto: Acervo IEB

Em Belém, a chegada dos Warao começou em 2017. Entre os relatos dos indígenas sobre esse momento, destacam-se as precárias condições em que se encontravam as famílias. Depois da longa viagem, chegavam com graves problemas de saúde e muitas demandas de assistência e proteção. Assim, lideranças tradicionais e aquelas formadas durante o deslocamento se uniram na tentativa de diálogo com as instituições locais em busca de direitos.

“Nós não conhecíamos todo mundo da Venezuela, tem gente de outras comunidades que a gente conheceu aqui, tentamos nos ajudar uns aos outros”, relata Freddy Cardona, uma das primeiras lideranças a chegar em Belém.

Procurador-chefe do Ministério Público Federal (MPF) no Pará e titular da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, Felipe Moura Palha relembra que em 2017 foi necessário o esforço de reunir e sensibilizar uma rede de órgãos públicos municipais e do estado para desenvolver ações emergências de assistência social.

“Naquele primeiro momento, entender que a responsabilidade pela resposta humanitária aos refugiados indígenas oriundos da Venezuela, que são anteriores à própria Venezuela, era uma responsabilidade solidária dos entes federativos foi um trabalho bem difícil.”, explica o procurador da República Moura Palha.

Segundo dados da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), cerca de 8 mil indígenas Warao vivem atualmente no Brasil, especialmente nos estados da região Norte. No Pará, só nos municípios de Belém e Ananindeua, são mais de 700 indígenas dessa etnia, organizados em 13 comunidades.

Organização comunitária

Junto a organizações da sociedade civil e outros parceiros, os Warao passaram a se movimentar e dialogar com o poder público por demandas como o atendimento à saúde qualificado e adequado às suas especificidades, abrigamento e acolhimento digno, bem como escolas para as crianças.

Ainda em 2017, por meio de mobilização social, os Warao conquistaram o primeiro abrigo público no Pará, gerido pelo governo do estado naquele momento. Nos anos seguintes, a mobilização dos indígenas obteve outras conquistas importantes, como o abrigo gerido pela Prefeitura de Belém, a contração de professores Warao na rede estadual de educação pública e a criação do protocolo de consulta, elaborado com apoio do MPF e da Universidade do Estado do Pará (UEPA).

A partir de 2021, lideranças Warao intensificaram ações de fortalecimento político e diálogo com o movimento indígena brasileiro, setores do indigenismo e outros movimentos sociais, por meio de ações desenvolvidas em parceria com o  Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), organização não-governamental que atua há 25 anos com populações tradicionais na Amazônia e no Cerrado, especialmente com povos indígenas amazônidas por meio do Programa Povos Indígenas da instituição.

Antropóloga e analista socioambiental do IEB, Lanna Peixoto avalia que o fortalecimento comunitário dos Warao abriu caminho para conhecerem e reivindicarem seus direitos. “No início do trabalho do IEB com os Warao, nós percebemos que os laços e a organização social e comunitária tinham sido profundamente afetados pelo processo de deslocamento forçado, o que contribuia para a dificuldade de construírem uma ação coletiva e estruturada por acesso à políticas e direitos”.

Desde então, o IEB já implementou projetos de apoio à organização comunitária, geração de renda por meio do artesanato, comunicação e saúde junto à população Warao de Belém e Ananindeua. A organização, que tem larga experiência com povos indígenas no Brasil, se viu desafiada com a realidade complexa e particular dos Warao.

“O IEB se dedicou primeiro a escutá-los, conhecer os Warao, sua cultura e suas demandas, depois passou a construir espaços de diálogo, respeitando suas lideranças e formas organizativas, onde eles pudessem estar juntos para refletir sobre o que entendem e querem para um bem viver. Esses espaços têm promovido o fortalecimento desse grupo como povo indígena no território que hoje habitam, articulando as diferentes comunidades e promovendo capacidades de incidência política”, explica Lanna Peixoto.

Entre os resultados mais relevantes conquistados até aqui, destacam-se a formação de lideranças indígenas e o apoio à estruturação do Conselho Warao Ojiduna, por meio de projetos desenvolvidos pelo IEB com apoio da Acnur, da Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional (Usaid) e, mais recentemente, da Gestos e União Europeia.

Ainda em 2021, o IEB mapeou o perfil laboral dos Warao, experiências e expectativas de educação e, no ano seguinte, produziu um diagnóstico que aborda as percepções dos indígenas em relação ao trabalho. A Escola de Lideranças, organizada pelo IEB e Acnur entre 2021 e 2022, com apoio de outros parceiros, também foi decisiva para que os Warao avançassem na sua organização política comunitária. Além disso, o apoio às redes de artesãs que tiveram oficinas de aperfeiçoamento, de precificação e venda ajudaram a impulsionar a venda do artesanato e gerar renda aos indígenas.

Conselho Warao

Diante das possibilidades organizativas que os Warao conheceram nas formações e intercâmbios, identificaram que a estrutura de um conselho de lideranças se adequava à configuração das comunidades e dialogava com suas formas tradicionais de organização social e familiar, permitindo maior horizontalidade nas tomadas de decisão. Assim, em agosto de 2022, fundaram o Conselho Warao Ojiduna.

Delegação Warao na III Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília (DF). Foto: Conselho Warao Ojiduna

“Tivemos a participação de todas as comunidades de Belém e Ananindeua. As comunidades menores indicaram duas pessoas e as comunidades maiores indicaram 4 pessoas, que foram eleitas pelas próprias comunidades para o Conselho. Estamos passando dificuldades, mas criamos nossa organização para que nós possamos dizer o que estamos vivendo e quais são os nossos direitos como indígenas”, explica o coordenador geral da entidade Jhonny Rivas.

Jhonny Rivas (com microfone) durante a reunião ordinária do Conselho Estadual de Política Indigenista do Pará (Consepi), realizado em agosto de 2023, em Belém. Foto: Pepy Põocatëyë / Coiab

O Conselho Warao Ojiduna está estruturado com uma coordenação executiva composta por quatro lideranças, departamento de comunicação, coordenação financeira e os comitês temáticos de trabalho/artesanato, saúde, documentação, cultura e esporte, mulheres, jovens e educação.

Com o desafio de representar os indígenas das 13 comunidades Warao, localizadas no bairro do Tapanã e na Ilha de Outeiro, em Belém, e nos bairros Levilândia, Distrito Industrial e Curuçambá, em Ananindeua, o conselho aposta na aproximação com as bases comunitárias para fortalecer sua legitimidade e atuação.

Morador e liderança da comunidade Warao A Janoko, em Outeiro, Jhonny Rivas reforça que as estruturas da entidade foram pensadas a partir das comunidades para garantir a representatividade. “As comunidades indicaram suas lideranças, para que apoiem as comunidades e também para levar as demandas da base até o conselho. Acreditamos que isso vai fortalecer nossa organização, trabalhar bem dentro das comunidades e fazer com que sejamos escutados”, afirma.

Em dezembro do ano passado, o conselho realizou o I Encontro de Cultura Warao, retomando sua tradição de celebrar o Dia da Resistência Indígena, comemorado no dia 12 de outubro em diversos países da América Latina, reunindo as comunidades para discutir questões políticas e também para a prática de esportes e danças. Na ocasião, também convidaram instituições da sociedade civil e dos governos estadual e municipais para apresentar o conselho recém fundado que passaria a ser entidade representativa oficial do povo Warao na Região Metropolitana de Belém.

I Encontro de Cultura Warao na Região Metropolitana de Belém. Foto: Acervo IEB

Em 2023, o Conselho Warao Ojiduna foi contemplado, por meio de edital de seleção pública, no Prêmio Fundação Cultural do Pará de Incentivo às Artes e Cultura, conquistando recursos para realização do II Encontro de Cultura Warao, previsto para ser realizado em novembro deste ano.

I Encontro de Cultura Warao na Região Metropolitana de Belém. Foto: Acervo IEB

Aos  23 anos de idade, a jovem liderança Isneiris Nunez, da comunidade de Levilândia, em Ananindeua, ocupa o cargo de vice-coordenadora geral do Warao Ojiduna. Depois de participar nos últimos anos de eventos de mulheres indígenas, jovens extrativistas e de comunicação, ela destaca o papel das mulheres na construção do conselho.

Isneiris Nunez dá entrevista à TV Cultura do Pará, durante o I Encontro de Cultura Warao. Foto: Acervo IEB

“As mulheres sempre estão na luta porque buscam melhorias para seus filhos, seja nas ruas ou dentro do conselho. São mulheres lutadoras e trabalhadoras que estão tendo essa experiência para abrirem caminhos para que seus filhos sigam adiante. São mulheres muito fortes e que seguem adiante em meio a dificuldades, porque elas sabem como é o trabalho, como é a cultura. São educadoras, cultivadoras, lideranças que têm muitas experiências. E também tem mulheres mais jovens que participam e querem aprender mais com essa experiência”, argumenta a vice-coordenadora do Conselho Warao Ojiduna.

Espaços públicos

Com a constituição do conselho, os Warao passaram a interagir ainda mais com órgãos governamentais e participar de fóruns de discussões de políticas públicas e direitos sociais. Em abril deste ano, uma comitiva do Warao Ojiduna foi à Brasília e visitou os ministérios do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), da Educação (MEC), Justiça e Segurança Pública (MJSP) e de Povos Indígenas (MPI), além da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Conselho Nacional de Direitos Humanos e MPF.

O diálogo inicial em Brasília facilitou a interlocução do Conselho Warao com a Coordenação Técnica Local da Funai em Belém, onde os indígenas foram recebidos pela primeira vez em julho deste ano.

Em Belém, o conselho de lideranças Warao participou ativamente da construção do Comitê Municipal para Migrantes, Refugiados e Apátridas e está nesse comitê para contribuir com propostas de iniciativas que contemplem a população indígena na cidade.

O conselho também foi convidado a participar de reuniões do Conselho Estadual de Política Indigenista, reativado em agosto deste ano pela Secretaria de Povos Indígenas (Sepi) do Governo do Estado do Pará. Ainda que não participem com representação oficial neste conselho, as lideranças Warao poderão acompanhar e discutir a formulação de políticas públicas para os povos indígenas em nível estadual.

Movimento Indígena

Além do diálogo com governos, fóruns e instituições do sistema de Justiça, os Warao também têm aumentado sua participação nos espaços do movimento indígena. Em abril deste ano, o Conselho Warao Ojiduna participou do Acampamento Terra Livre, em Brasília (DF), maior mobilização indígena do país.

Em agosto deste ano, estiveram nas atividades do movimento indígena durante o Diálogos Amazônicos, evento que precedeu a Cúpula da Amazônia, realizada em Belém. Em setembro, uma delegação de mulheres Warao do Pará participou pela primeira vez da Marcha das Mulheres Indígenas, que reuniu mais de 5 mil mulheres, também em Brasília, na terceira edição do evento, e abriu importante diálogo com a União de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab).

Além disso, o Conselho Warao também participou das mobilizações contra a Tese do Marco Temporal e contra a violência nas terras indígenas nos últimos meses.

Direitos indígenas

Em carta entregue à Funai, junto a outras representações de indígenas refugiados no Brasil, o Conselho Warao Ojiduna defende a garantia do reconhecimento dos povos indígenas migrantes perante os órgãos públicos do Brasil e adoção de medidas e políticas públicas no contexto urbano, incluindo acesso à moradia digna e culturalmente adequada, entre outras propostas.

“Nosso conselho defende atenção de políticas públicas específicas que considerem nossa cultura para saúde, para educação. Nossos filhos não são compreendidos quando vão à escola porque é outra língua. Nossos irmãos Warao vão aos hospitais e não são compreendidos. Nós queremos que profissionais Warao sejam contratados para atuar nesses serviços públicos”, enfatiza Jhonny Rivas.

Ocorre que, no diálogo com diferentes estruturas de serviços públicos, é informado aos Warao que eles não podem acessar as políticas públicas específicas da população indígena porque não são oriundos de territórios indígenas no Brasil. Para o Ministério Público, isso é ilegal, já que os direitos dos povos indígenas são assegurados em tratados internacionais.

“O Estatuto dos Povos Indígenas, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Constituição Federal de 1988 não fazem qualquer menção sobre o local de nascimento do indígena, isso não importa. Então, toda legislação municipal, estadual ou federal precisa ser lida de acordo com esses instrumentos. Ou seja, não precisa que se aprove nenhuma lei para reconhecer todos os direitos do povo Warao como população indígena. Não existe essa exigência”, afirma o procurador da República Felipe Moura Palha.

Em resposta às perguntas desta matéria, a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) Joênia Wapichana, que também é advogada, reconhece os desafios enfrentados pelos povos indígenas migrantes no Brasil e afirma o esforço da atual gestão para inclusão dessa população nas políticas públicas indigenistas.

“A Funai, como um órgão que defende os direitos dos povos indígenas, ela reconhece esses direitos dentro do que a nossa legislação e os tratados internacionais já reconhecem, que os povos indígenas são detentores de direitos, que merecem um tratamento específico diferenciado e ações para não sofrerem discriminação e que o próprio Estado brasileiro possa promover e desenvolver políticas que assegurem a sua cidadania e seu bem estar. E os povos indígenas Warao não estão fora desse reconhecimento”, afirma Wapichana.

A presidenta da Funai pontua ainda que as demandas dos Warao se somam à realidade dos demais indígenas que vivem em contexto urbano, para quem já não existiam políticas inclusivas, mas que passam a ser considerados pela atual gestão do órgão, segundo ela. “Depois de vários anos de desmonte da política indigenista, a gente passa a tratar desses desafios.  A gente precisa ter ações e prevemos isso no Plano Plurianual de 2024, que foi elaborado por esta gestão no sentido de poder incluí-los dentro do programa governamental”, assegura Joênia Wapichana.

Para o procurador-chefe do MPF no Pará, Felipe Moura Palha, é necessária a imediata reestruturação da rede de gestores públicos dos municípios, do estado e da União para mobilizar decisões estratégicas que garantam aos Warao o acesso às políticas públicas específicas na educação, saúde, moradia, etc. “Essa estrutura interinstitucional é importante para diálogos extrajudiciais, mas também para eventualmente, se o Estado brasileiro estiver descumprindo a legislação internacional e a sua própria Constituição,  acionar a Justiça. Isso funcionou bem no início e esse âmbito de gestão, que talvez não esteja funcionando hoje, é o que a gente precisa retomar”.

Próximos passos

Em seu planejamento estratégico, o Conselho Warao Ojiduna definiu um plano de ações que orienta as ações da organização no diálogo com órgãos de governo, órgãos de fiscalização, mobilização de comunidades e diálogos com os movimentos sociais. Ainda neste ano, o conselho deve realizar uma apresentação formal aos procuradores da República no Pará e intensificar o diálogo com a Secretaria de Povos Indígenas do Pará, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas.

A Coordenação Técnica Local (CTL) da Funai em Belém também informou que irá iniciar em breve um diagnóstico dos indígenas migrantes da Região Metropolitana de Belém, para fins de planejar ações e políticas públicas. Segundo a CTL, este é o primeiro passo para iniciar o atendimento e os serviços que a Funai pode oferecer.

Ainda neste ano, em novembro, será realizado o II Encontro de Cultura Warao, reunindo indígenas dessa etnia de Belém e Ananindeua, em uma programação com apresentações culturais, atividades esportivas, diálogos com parceiros e uma assembleia geral do Conselho Warao Ojiduna. A abertura do evento está prevista para ser realizada na sede do MPF, em Belém, em parceria com a 6ª Câmara – Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais e com presença de outros representantes do sistema de Justiça e de órgãos de governo.

Para saber mais das ações dos Warao no Pará, acompanhe a página no Instagram @warao.ojiduna ou entre em contato através do e-mail [email protected].