Maior território quilombola do Brasil começa a ser mapeado, em Goiás

  janeiro 23, 2019

A Associação Quilombo Kalunga (AQK) deu em janeiro de 2019 um passo marcante nas ações do projeto “Uso do Geoprocessamento na Gestão do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga – SHPCK”, fomentado pelo Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF, da sigla em Inglês para Critical Ecosystem Partnership Fund)O projeto tem como objetivos conhecer com profundidade a realidade das comunidades Kalunga, usar a tecnologia de geoprocessamento para mapear detalhadamente o território, promover a ocupação do SHPCK de uma forma mais sustentável e fazer com que os Kalunga sejam reconhecidos internacionalmente como defensores da conservação da biodiversidade.

O projeto foi aprovado e assinado pelo Fundo em junho do ano passado, depois de aprovado em Assembleia Geral em que participaram todas as Associações do Quilombo Kalunga. O processo de georreferenciamento e a caracterização ambiental do Sítio Histórico foram divididos em duas fases. Na primeira foi feito um treinamento com 24 jovens Kalunga para operarem o Open Data Kit – ODK – a ser utilizado no levantamento das informações socioeconômicas e para o uso de GPS, contratação de um PhD em geoprocessamento e de um engenheiro agrônomo, estruturação da Associação para o desenvolvimento das ações, encontros iniciais com membros-chave da comunidade Kalunga e da esfera governamental.

Ainda como partes da primeira fase, em janeiro foram iniciados o levantamento e o cadastro socioeconômicos dos moradores do Sítio, com a meta de participação de todas as 1,5 mil famílias quilombolas, espalhadas no que é considerado o maior território de quilombo no Brasil, com 261.999,69 hectares. Cada Unidade Produtiva Familiar será georreferenciada, cadastrada e caracterizada em termos socioeconômicos e georreferenciamento das atividades desenvolvidas em sua área. O objetivo é que, até julho de 2019, todos tenham sido entrevistados.

A segunda etapa compreenderá a associação dos levantamentos de campo com a base cartográfica e o mapeamento temático realizado por meio de geoprocessamento e sensoriamento remoto. Será feito também o levantamento cadastral das atividades de garimpo, retirada ilegal de madeira e pesca predatória, bem como dos impactos delas decorrentes e, também, dos atrativos turísticos e de possíveis roteiros a serem estabelecidos. O projeto prevê ainda a elaboração, de forma participativa, de um Sistema de Informações Geográficas no Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, em estações de trabalho dotadas de softwares de geoprocessamento e de conexão com os principais bancos de dados via internet.

Conscientização ambiental

Durante a aplicação das pesquisas, as famílias quilombolas também serão mobilizadas sobre a importância da preservação da biodiversidade em todo o território. Para isso, foram confeccionados 4 mil calendários, que serão entregues nas casas Kalunga, além de pessoas e de locais estratégicos dos municípios de Alto Paraíso, Cavalcante, Campos Belos, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás. Os calendários começaram a ser distribuídos para as comunidades envolvidas, instituições públicas, proprietários de terra, representantes municipais, acadêmicos, agentes de saúde e escolas em janeiro deste ano, para que todos participem da gestão ambiental, de forma a contribuir com a preservação da biodiversidade. Também foram confeccionados banners, que serão fixados em todas as escolas municipais, estaduais e particulares nos cinco municípios.

De acordo com o levantamento prévio feito pela Associação, há 19 espécies localmente ameaçadas encontradas na região, dentre as quais a Griffinia nocturna, uma planta em floração listada como criticamente ameaçada no Centro Nacional de Conservação da Flora. Há também duas espécies de pássaros, Penelope ochrogaster Harpyhaliaetus coronatus, que estão globalmente ameaçadas e constam como vulneráveis e ameaçadas na Lista Vermelha Nacional Brasileira e na União Internacional para a Conservação da Natureza – UICN. A Penelope ochrogaster é uma espécie endêmica da área deste projeto e, segundo informações dos Kalunga, ainda está presente em todo o território.

As espécies-alvo de conservação foram priorizadas de acordo com o critério de grau de ameaça, focado em espécies que enfrentam risco extremamente elevado de extinção na natureza, exigindo ações urgentes de conservação. O segundo critério foi a existência de Planos de Ação Nacional (PANs) para a conservação das espécies ou dos seus habitats.

De acordo com Vilmar Souza Costa, presidente da Associação Quilombo Kalunga desde 2014, a experiência do povo Kalunga de convivência harmoniosa com o Cerrado por quase três séculos é um exemplo a ser seguido, e a luta pela preservação deste bioma é um dos principais objetivos da Associação. “O relevante impacto deste projeto será o de dotar nossas comunidades de informações detalhadas sobre o território em que vivem, dados estes que serão incorporados e integrados no planejamento e nas estratégias de conservação e desenvolvimento sustentável das nossas terras, respeitando o conhecimento tradicional e a cultura do povo Kalunga”.

Costa lembra que a pesquisa vai possibilitar aos Kalunga o conhecimento do uso atual do território, da quantidade dos rebanhos de animais, de áreas plantadas e da produção, das potencialidades e limitações da região, possibilitando planejar o uso racional e seu aproveitamento sustentável. Ao final, todo estruturado em um banco de dados da Associação Quilombo Kalunga, será utilizado como uma forte ferramenta auxiliar no processo de gestão ambiental e territorial, que permita orientar o processo de ocupação e uso sustentável das áreas que a AQK vem recebendo e as que já ocupam. “Este projeto irá contribuir para resolver dois grandes problemas da gestão do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga: a construção de um banco de dados com o levantamento dos dados socioeconômicos e de uso e ocupação do solo pelas famílias Kalunga, além de poder levantar todas as potencialidades e restrições de uso do território. Estas informações irão permitir aos Kalunga um grande avanço no sentido de proteger o seu território”, declara o presidente da Associação.

Sobre o Sítio Histórico

O Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga foi instituído pela Lei Complementar n.º 19, de 5 de janeiro de 1996, pelo Estado de Goiás. Depois foi reconhecido por Decreto do Presidente da República do Brasil, declarando de interesse social para fins de desapropriação os imóveis do Território Kalunga. O SHPCK conta com aproximadamente 39 regiões,  nas quais estão distribuídas 1.500 famílias. Os Kalunga, ao longo de aproximadamente 300 anos, vivem nos vãos das serras e carregam muito forte em seu povo a cultura e a tradição históricas, através de artesanatos como cerâmica, tecelagem, bordado e a produção de remédios caseiros. Apesar dos avanços alcançados, o SHPCK não teve até hoje a totalidade de suas terras regularizadas.

O Fundo e o Cerrado

O Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos vem atuando desde o ano de 2.000 para assegurar a participação e a contribuição da sociedade civil na conservação de alguns dos ecossistemas mais ricos do mundo do ponto de vista biológico, porém atualmente ameaçados. O objetivo é promover a conservação em áreas biológicas de alta prioridade e numa escala de paisagem. O CEPF é uma iniciativa conjunta da Agência Francesa para o Desenvolvimento, Conservação Internacional, União Europeia, Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF), Governo do Japão e Banco Mundial. Uma meta fundamental é garantir que a sociedade civil esteja envolvida com a conservação da biodiversidade. O Fundo oferece financiamento para proteção de ecossistemas únicos e ameaçados – conhecidos também como hotspots de biodiversidade.

Em 2013, o Conselho de Doadores do CEPF selecionou o bioma Cerrado como um dos hotspots prioritários, e 8 milhões de dólares foram alocados para investimentos em projetos no período de 2016 a 2021. Entre os anos de 2016 e 2018 o CEPF Cerrado já realizou duas chamadas para apoio a projetos no Cerrado, e agora está em sua terceira. Atualmente, o Fundo conta com aproximadamente 40 projetos, divididos em Grandes e Pequenos Apoios. O projeto da Associação Quilombo Kalunga foi um dos 40 selecionados.

O Cerrado é proporcionalmente o bioma mais desmatado do Brasil. De acordo com dados do Ministério do Meio Ambiente, metade da vegetação nativa do Cerrado não existe mais. O Cerrado sofre com o avanço indiscriminado de commodities do agronegócio. Em contraste com o tamanho do Cerrado e a escala de ameaças que enfrenta a região, as oportunidades de financiamento para as organizações da sociedade civil que desejam se engajar nas atividades de conservação são atualmente limitadas.

Texto: Associação Quilombo Kalunga