Mulheres que Lutam pela Vida, pelo Cuidado e pelo Futuro: Encontro das Mulheres Protagonistas da Flona Tefé

 

“Na floresta tem gente!” Este grito segue  ainda hoje ecoando pelos igarapés e varadouros, entre o denso manto verde de árvores da Floresta Nacional de Tefé. Nos dias 16 e 17 de agosto de 2024, na Comunidade São Francisco do Arraia, esse grito ganhou forma e rostos, em um encontro que reuniu mais de 60 mulheres – indígenas, extrativistas,  ribeirinhas, quilombolas – todas trazendo consigo o peso de suas histórias, e  a força das matriarcas que vieram antes delas. Mulheres que, como os troncos centenários da floresta, resistem aos desafios cotidianos, permanecendo firmes e  enraizadas na terra.

 

Chegaram todas  em suas embarcações, vindas de diversas comunidades da Floresta Nacional de Tefé e entorno, superando os banzeiros, bancos de areia  e o calor sufocante da temporada seca. Em suas  bagagens, levaram suas memórias e a  sabedoria das mais velhas. E ali, sob a copa das árvores, compartilharam seus conhecimentos, discutiram os desafios e, acima de tudo, celebraram a força de viver em comunhão com a natureza.

 

O encontro foi o terceiro realizado em 2024. A cada roda de conversa, a cada risada solta, a cada troca de olhares, percebia-se a teia invisível que ligava essas mulheres. Era como se estivessem costurando uma grande malhadeira, que tomava forma numa trama forte e resistente. Elas estavam ali para reconhecer-se e encontrar, juntas, os caminhos e soluções de cura que respeitam e valorizam suas culturas e modos de vida. Elas discutiram como o cuidado com a saúde do corpo e da mente está intrinsecamente ligado ao cuidado com a terra – e como essas dimensões precisam ser integradas para garantir o bem-estar de suas comunidades.

Boas vindas e apresentação do processo

O encontro teve início com uma acolhida organizada  pela  Associação dos Moradores e Produtores Agroextrativistas da Flona Tefé e Entorno (APAFE). Dorimar Rodrigues, vice-presidente da associação foi quem abriu os trabalhos, fazendo questão de transformar as boas-vindas em um gesto de carinho e respeito por todas as mulheres que doaram seu tempo para estarem presentes no encontro. Dorimar ergueu a voz com a firmeza de quem conhece bem as lutas e os sonhos dessas comunidades. Em meio ao círculo, ela deu as boas-vindas às participantes e aos representantes das instituições parceiras – CNS, Fiocruz/Amazônia, IDSM, IEB, ICMBio, e UFAM – que, juntas, formavam uma rede apoio para a realização do encontro.

Após as palavras iniciais, as formalidades foram deixadas de lado. As mulheres se reuniram, formando um grande círculo, para uma dinâmica de integração. Ali, no centro da roda, não havia hierarquia, apenas igualdade. Era um momento de alinhar expectativas, de olhar nos olhos umas das outras e sentir que, apesar das diferenças, todas ali compartilhavam os mesmos objetivos – fortalecer os laços, compartilhar saberes e traçar, juntas, os caminhos que as guiarão pelos desafios do dia a dia. 

 

Com uma metodologia que colocou cada mulher no centro do processo, o encontro se transformou em um verdadeiro intercâmbio de saberes. Os conhecimentos tradicionais foram honrados e valorizados ao lado de novas abordagens, como a terapia holística, que une corpo e espírito, e a agroecologia, que reinventa o cultivo sem perder de vista o respeito pela terra.

Primeiro Dia: Acolhida, Autocuidado e Saúde Feminina

 

A manhã do primeiro dia foi um mergulho profundo no tema “Saúde e Autocuidado”. Daniele Gaia, com a serenidade de quem conhece bem os caminhos do corpo e da alma, conduziu uma roda de conversa que logo se transformou em um espaço de cura e aprendizado mútuo. Ali, sob a sombra acolhedora das árvores, as mulheres foram convidadas a explorar práticas de autocuidado que iam além do físico. Daniele, com sua voz suave e firme, guiou-as por técnicas de respiração, meditação e alongamentos – movimentos simples, mas carregados de significado, como se cada gesto fosse uma oração silenciosa.

Logo depois, a conversa tomou uma direção ainda mais íntima  e necessária, aprofundando o debate sobre a saúde da mulher .Foi sob as sombras protetoras das árvores, onde a natureza parecia conspirar para criar um ambiente de acolhimento e confiança, Tabatha Benitz, do Instituto Mamirauá, assumiu a liderança de uma roda de conversa. As palavras de Tabatha, carregadas de sabedoria e empatia, abriram espaço para que as mulheres falassem sobre os desafios que enfrentam em suas comunidades – desafios que vão desde a escassez de serviços médicos até a falta de reconhecimento dos saberes ancestrais que carregam, refletindo sobre como integrar práticas de autocuidado na rotina diária, ao mesmo tempo em que cuidam da terra.

No fim da manhã, as mulheres se uniram em torno da construção de uma mandala coletiva. Usando folhas, frutos, flores e sementes recolhidos da própria comunidade, elas trabalharam em silêncio, cada uma contribuindo com algo que a terra havia oferecido. Sem alarde, sem pressa, dispuseram os elementos em um círculo que, ao final, refletia a união e a ligação que sentiam entre si e com o ambiente ao redor. A mandala, ali no chão, era  um testemunho silencioso da força do trabalho coletivo dessas mulheres com a terra que as sustenta.

 

Conexão com a Terra e Fortalecimento Coletivo

A tarde teve início com uma roda de partilha ao ar livre, onde Alessandra, da Fiocruz/Amazônia, tomou a dianteira em uma discussão sobre o papel das mulheres no cuidado e na preservação da terra. Em meio ao calor suave e à brisa que trazia o cheiro da floresta, Alessandra falou sobre a importância dos saberes tradicionais, aqueles transmitidos de mãe para filha, e sobre como esses conhecimentos são essenciais para a sustentabilidade. Ela criou um ambiente onde as mulheres se sentiram à vontade para abrir seus corações e compartilhar suas preocupações e os desafios que enfrentam diariamente, tanto no que diz respeito ao meio ambiente quanto à saúde de suas comunidades. Cada voz, cada história compartilhada, reforçava a ligação indissolúvel entre elas, suas terras e suas vidas.

Logo após, as participantes se dividiram em grupos de trabalho (GTs) para identificar as principais demandas de saúde em suas comunidades. Em grupos, discutiram as questões mais urgentes e colaboraram ativamente, transformando suas preocupações em uma carta de reivindicações. Essa troca de ideias foi um momento de escuta mútua e articulação das necessidades coletivas.

O dia terminou com uma noite cultural, onde as mulheres compartilharam suas culturas através de apresentações musicais e artísticas. A atmosfera era de celebração, com um sorteio organizado pelas participantes para criar um fundo de apoio ao grupo, reforçando ainda mais o espírito de união coletiva.

 

Segundo Dia: Sustentabilidade e Políticas Públicas


O segundo dia começou com um café da manhã coletivo seguido por uma sessão de animação para despertar e energizar as participantes. Dona Beth, da comunidade da Missão, liderou a programação oficial com uma discussão sobre práticas sustentáveis de cultivo e manejo do solo. Ela destacou a importância de cuidar da terra como um reflexo direto do cuidado com o ambiente ao redor, e alertou sobre os perigos do uso de agrotóxicos para a saúde das comunidades. Dona Beth também compartilhou alternativas naturais aos pesticidas, recomendando plantas repelentes como cravo, arruda e manjericão, transmitindo saberes tradicionais que visavam proteger tanto a terra quanto as pessoas.

Quando Silvia Elena, do CNS, tomou a palavra, o silêncio e a atenção se fizeram presentes. As mulheres, com os olhos fixos e os corpos levemente inclinados para frente, sabiam que o recado era importante. Silvia explicou com  importância de acessar políticas públicas como o Pronaf Mulher, Bolsa Família, Grupo da Terra, Dignidade Menstrual, Documentação Pessoal, a necessidade de acesso a exames preventivos, DAP CAF, PAA PNAE e os serviços do Banco da Amazônia e Banco do Brasil. Ela explicou como esses programas podem fortalecer a produção agrícola, a saúde e a economia das comunidades, incentivando as mulheres a se apropriarem desses recursos e oferecendo orientações práticas para acessá-los, reforçando a urgência de garantir esses direitos para transformar suas vidas.

Juliana Oliver, do  Instituto Mamirauá, trazendo sua vasta experiência em agroecologia, e Paulo, do ICMBio, aprofundaram a discussão com ensinamentos  sobre compostagem, produção de adubo orgânico e o manejo integrado da terra. Suas contribuições foram fundamentais para que as participantes ampliassem  seus conhecimentos sobre como melhorar a qualidade do solo e promover a sustentabilidade em suas práticas agrícolas, proporcionando ferramentas práticas para fortalecer o cuidado com a terra em suas comunidades.

A tarde do segundo dia foi dedicada a discussões sobre o cultivo de alimentos e plantas medicinais, liderada por Maria das Dores, do Instituto Mamirauá. As participantes trocaram receitas e conhecimentos sobre o uso de plantas na medicina tradicional, reforçando a importância de manter esses saberes vivos e integrados ao cotidiano das comunidades.

 

CARTA DE MANIFESTAÇÃO E REIVINDICAÇÃO DAS MULHERES DA FLONA DE TEFÉ E ENTORNO

Ao final do encontro,  todas se reuniram para aprovar a carta de reivindicações, um documento coletivo que carrega a voz de cada mulher presente no III Encontro das Mulheres Protagonistas de 2024. Esta carta foi impressa em várias cópias, e será utilizada como um instrumento de pressão para que as autoridades locais e federais tomem medidas concretas em resposta às necessidades das comunidades representadas por estas mulheres. 

 

 

 

Com o sol já se pondo e as canoas prontas para partir e levar a mulherada de volta para suas comunidades, houve uma despedida cheia de promessas. Promessas de que o próximo encontro, previsto para fevereiro de 2025 ainda maior, mais potente e com a presença de ainda mais mulheres.  Mas até lá, como disseram em sua carta:  ” … nosso compromisso é com a proteção da vida, da cultura e do território” – e esse compromisso se revela no protagonismo de cada mulher da  Floresta Nacional de Tefé.

O Encontro das Mulheres Protagonistas é uma atividade integrante do projeto “Viver, Conservar e Produzir”, realizado pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), com financiamento da Rainforest Trust e apoio dos parceiros Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/Amazônia), Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Esse encontro reafirma o compromisso dessas instituições com a valorização e o fortalecimento das mulheres em suas comunidades, promovendo a integração entre conservação ambiental, produção sustentável e o bem-estar social na Amazônia.

 

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