Mbotawa 2024: Celebração Cultural e Avanço na Gestão Territorial Indígena dos Tenharin Marmelos

A celebração cultural reuniu esforços dos Tenharin na gestão de seu território e a relevância do PGTA e o Protocolo de Consulta como fortalecimento e preservação das tradições e direitos

Por Cleiton Jiahui, Derick Farias / IEB e Webert da Cruz / IEB

Aos sons de fogos de artifício, comitivas de caçadores representantes das 11 aldeias da Terra Indígena Tenharim Marmelos anunciam sua chegada. Adornados com cocares, pinturas corporais, arcos e flechas e entoando suas longas flautas de bambu chamadas Yreru’a, os caçadores, regressos de expedições realizadas em diferentes localidades do território, depositam suas contribuições de caça e pesca para o dono da festa, marcando o início do ritual Mbotawa.

Parte do calendário anual do povo Tenharin, a festa tradicional Mbotawa ocorre a cada ano em uma aldeia diferente, congregando uma série de atividades rituais e acontecimentos que envolvem grande parte das comunidades, como o casamento tradicional e a cerimônia de luto pela passagem de mortos. A festa é marcada por trocas entre os dois clãs: Mutum e Tarawé (ou Gavião), que dançam alternadamente, como devem ser também os casamentos para o povo Tenharin.

Os clãs mutum (pintados de babaçu), e tarawé (pintados de urucum) dançam ao som dos chocalhos e das flautas de bambu formando uma grande roda. Foto: Webert da Cruz / IEB

Em 2024, Gilvan Tenharin, cacique da aldeia Kampinho-hü – aldeia escolhida para a realização da festa tradicional Mbotawa deste ano – foi o anfitrião responsável por coordenar os grupos de caça e pesca coletiva, a coleta das castanhas e tabocas, a manufatura de adornos e tinturas naturais e o preparo da farinha mandiogu’i. Feita especialmente para o Mbotawa, a farinha é à base de mandioca, que antes de ser torrada, passa por um processo de defumação à beira do fogo por vários dias. A mandiogu’i é distribuída a todos os convidados no último dia da cerimônia, quando é servido o prato principal da festa: anta moqueada no leite da castanha.

Gilvan, dono da festa e cacique da aldeia Kampinho’hu, ao lado de seu filho, Neto – ambos do clã mutum, passado por linhagem paterna. Foto: Webert da Cruz / IEB

Este ano, a APITEM (Associação do Povo Indígena Tenharim Morõgitá) incluiu mais um evento no Mbotawa: o lançamento do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) e a entrega de exemplares impressos do Protocolo de Consulta da Terra Indígena Tenharim Marmelos, apresentado no ATL.

Daiane Tenharim, a primeira coordenadora mulher da associação, destaca a importância do instrumento para a proteção e gestão sustentável do território. Foto: Webert da Cruz / IEB

“O protocolo, quando eu cheguei na coordenação da APITEM, já estava em fase de elaboração, que iniciou com a formação dos Pesquisadores do Protocolo de Consulta. Na época, a associação era dirigida pelo Márcio e Márcia, e nós assumimos nessa pegada de finalizar esse instrumento de luta. Já sobre o PGTA, o meu povo sempre teve essa reivindicação, e internamente a gente sempre discutia isso, já conversava, já sabia mais ou menos o que a gente queria colocar dentro do nosso PGTA, dentro desse documento. Quando a gente conseguiu esse apoio com o IEB, através do do Projeto Liga da Floresta com apoio do LIRA, o recurso era pequeno, mas a gente se comprometeu em fazer toda a parte de campo com a estratégia de utilizar os atores sociais, que são os nossos Agentes Ambientais, os próprios Pesquisadores do Protocolo de Consulta, nossos Técnicos em SIG e nossas Pesquisadoras do Clima”.

“Além disso, professores, anciões, agentes de saúde e grande parte da população de todas as aldeias participaram. A gente teve nas duas construções, tanto do Protocolo de Consulta, quanto do PGTA, formas de participação coletiva.  Inclusive tivemos momentos sem a presença de parceiros em que todas as aldeias se concentraram no local escolhido pelas lideranças para debater mais profundamente e em nossa língua materna e assim aprimorar o entendimento das comunidades. Foram muitas conversas entre nós para que o povo todo pudesse assimilar melhor o que é o Protocolo de Consulta, o que é o PGTA, para que servem esses instrumentos e como usá-los. Então, a gente teve uma participação muito boa de todas as aldeias do território”.

Formação para gestão

Em parceria com o IEB e com apoio da USAID e da iniciativa Lira (composta pelo Fundo Amazônia e Fundação Moore), o PGTA da Tenharim Marmelos foi realizado de maneira participativa e envolveu diferentes atores elencados pela APITEM e pelo conselho de caciques Tenharim, sobretudo 10 Agentes Ambientais Indígenas (AAI).

Capacitados para o uso de novas tecnologias de levantamento de dados geográficos, socioeconômicos e culturais, os AAI realizaram uma profunda pesquisa sobre o povo e o território que subsidiou as comunidades para a construção de seus acordos internos e demandas de apoio e parcerias para alcançar seus projetos futuros. Esses projetos envolvem políticas públicas dirigidas às instâncias de governo municipal, estadual e federal, e atividades executadas por parceiros não governamentais que compõem o PGTA.

“O IEB teve um papel importante na elaboração do Protocolo de Consulta e do PGTA da Terra Indígena Tenharim Marmelos, mas cabe enfatizar, um papel coadjuvante. Nós ficamos na assessoria para realizar esses dois documentos, fizemos a formação dos Agentes Ambientais Indígenas, mas os protagonistas mesmo foram os Tenharin. Eles é que assumiram todo o processo junto com a APITEM, com os AAI dentro das suas aldeias, trabalhando em suas pesquisas e propostas, e assim, construíram esse documento.” Cloude, coordenador do Programa Povos Indígenas do IEB ressaltou ainda que coube ao IEB desenvolver o processo metodológico e ajudar a colocar no papel as informações produzidas pelos indígenas no formato desejado por eles.

“Ficou decidido que todas as etapas de elaboração do PGTA integrassem o documento, de forma a destacar e ficar claro para apoiadores e gestores públicos, que o PGTA é reflexo de profundas pesquisas e debates autodeterminados pelos Tenharin. Com isso, a intenção é atacar a implementação de ações que já partem te um acúmulo de conversas e de consensos estabelecidos ao longo desse processo”, explica Marina Villarinho, assessora do PPI que ajudou a organizar o PGTA.

No dia 21 de julho, quando o PGTA foi lançado, instituições como a CR Madeira/FUNAI, SESAI, SEMUPI, USP, UFAM, OPAN, CIMI, WWC, Forest Trend e o antropólogo responsável pela demarcação Edmundo Peggion (UNESP), estavam presentes para prestigiar e validar esse instrumento de gestão e se comprometer com aspectos de sua implementação.

MBotawa 2024. Foto: Webert da Cruz / IEB
MBotawa 2024. Foto: Webert da Cruz / IEB
MBotawa 2024. Foto: Webert da Cruz / IEB
MBotawa 2024. Foto: Webert da Cruz / IEB

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O PGTA

O Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) é um documento criado pelas comunidades indígenas para proteger e administrar seus territórios de forma sustentável. Ele é resultado de um trabalho conjunto entre lideranças indígenas, agentes ambientais indígenas e associações locais. O PGTA estabelece diretrizes para a conservação do meio ambiente, a valorização das tradições culturais e o desenvolvimento sustentável das comunidades. Além disso, o plano serve como um meio de diálogo com governos e organizações, ajudando a garantir direitos territoriais, acesso à saúde e educação, e a autonomia dos povos indígenas.

Os três primeiros capítulos do PGTA Tenharim Marmelos são intitulados “Cultura”, “Atividades Produtivas” e “Proteção e Gestão Territorial”, estão diretamente relacionados à gestão territorial e ambiental, e, portanto, aos Eixos Temáticos da PNGATI. O último capítulo, intitulado “Direitos Básicos”, envolve demandas do povo Tenharim às instituições governamentais, como as responsáveis pela saúde e educação diferenciada e à garantia de direitos territoriais.

Este plano é um marco na luta por autonomia e preservação do território Tenharim, mas  Margarida Tenharin ressalta que o que o documento registra e revela é parte de normas próprias e ancestrais, que versam sobre aspectos culturais e cosmológicos –  acordos internos tradicionais que são atualizados a cada geração, incorporando contatos e mudanças próprias da dinâmica social.

“O PGTA somos nós, esse povo aqui. Nós somos o corpo do PGTA. Somos povo originário e seguimos nossa lei. Nós temos lei. Não é de hoje que nós temos essa lei. Apenas não era reconhecida, porque ela não é escrita. Ela nunca foi escrita, mas sempre funcionou. Por isso essa luta não é de hoje. Essa luta, eu tenho certeza que o espírito do meu pai dos anciãos que já se foram, que tanto batalharam, que tanto fizeram esforço, é para que hoje, nós possamos ter nossos jovens guerreiros, inteligentes e com sabedoria. E eu tenho certeza que eles vão muito além, porque a gente está junto com eles”.

Margarida durante Mbotawa 2024. Foto: Webert da Cruz / IEB

Falou Margarida sobre os agentes ambientais indígenas e a juventude à frente da coordenação  APITEM. Ao emocionar os ali presentes, Margarida continuou:

“Essa era a nossa batalha. Principalmente do meu pai, o finado Quarã, que dizia: eu quero vocês lutando pelo nosso território. Não existe território sem nós. Nós somos o corpo, nós somos o espelho dele. Por isso, nós chamamos Aerēguē’té, porque nós somos donos do lago, nós somos donos da terra. Nós somos donos desse ar, nós somos donos de todo o universo que Deus criou.

Nós somos filhos dessa terra! Nós somos povo originário que sabemos criar. Nós estamos prontos para dar aula para quem quiser. De universidade, de todo quanto é lado. Esse PGTA serviu como registro das nossas leis, mas nós vamos levar muito mais além. Porque nós somos dono dele. É assim que nós criamos e fazemos conhecer. Esses meninos aqui, como estudaram, como conheceram, né? Conheceram o que é nosso e colocaram no papel, fizeram só é escrever. Mas a lei é nossa, desde gerações passadas. Por isso carregamos essa força, essa luta”.

 Cacique Gilvan Tenharin endossou a fala da anciã: 

“Porque tudo que se passa aqui, tudo que acontece aqui em nossa festa, foi repassado pelos nossos antepassados pra gente. Então a gente tem esse dever de continuar mantendo o que nos foi ensinado. A partir do momento que a gente começa a introduzir, a praticar o que nos foi ensinado, volta um filme na cabeça da gente. Porque tudo que nós sabemos devemos aos nossos anciões, aos nossos avós, aos nossos pais, que nos deu esse ensinamento, essa formação, principalmente de liderança. E o Mbotawa 2024, ele é histórico porque aqui foi lançado o PGTA e o Protocolo de Consulta do Povo Tenharin. Em uma das maiores e mais antigas aldeias do Povo Tenharim”.

 Para ter acesso ao PGTA, clique aqui. Para ver o Protocolo de Consulta, clique aqui.

Compartilhe este conteúdo
Pular para o conteúdo