Indígenas e extrativistas no debate sobre Licenciamento e Grandes Obras no Sul do Amazonas

  julho 18, 2018

Lideranças indígenas e extrativistas dos municípios de Lábrea, Humaitá, Pauini e Boca do Acre, representantes do governo e instituições não governamentais participaram do Seminário “Licenciamento e Grandes Obras no Sul do Amazona”, que aconteceu em Manaus de 10 a 12 de julho.

Ali puderam debater as etapas de planejamento e financiamento de grandes obras de infraestrutura, as normativas e leis que regem os processos de licenciamento ambiental dos empreendimentos que afetam suas terras. O evento também foi um espaço para troca de experiências sobre os impactos sofridos por comunidades tradicionais e indígenas.

“O governo diz que os povos indígenas e as populações tradicionais são contrários ao desenvolvimento. Não, nós não somos contra o desenvolvimento, nós nos desenvolvemos também de muitas maneiras, muito antes da estrada aparecer em nossas vidas derrubando a mata e assassinando nosso povo. O que nós somos contra é continuar fora das instancias de debate e decisão. Somos contra assistir essas obras acontecerem trazendo impactos enormes sem nem sequer sermos ouvidos. É por isso que estamos aqui hoje”, declarou Antônio Enésio Tenharim, liderança da Terra Indígena Tenharim Marmelos, que foi cortada pela rodovia Transamazônica (BR 230) ainda no início dos anos 70.

Ele destacou que o Seminário é um importante espaço para entender como os indígenas e povos tradicionais podem ser ouvidos e quais são os mecanismos de enfrentamento aos processos realizados em nome do poder econômico que beneficia poucos. “Em nome do desenvolvimento fomos quase exterminados e o governo sabe muito bem disso! Essas obras prometem trazer muitos avanços para a Região Amazônica, mas o que a gente vê é que a população local se prejudica muito”, disse.

A BR 230 fez parte do PIN “Plano de Integração Nacional” executado na época da ditadura militar, que tinha como meta clara integrar a Amazônia à economia do país por meio da expansão da fronteira agrícola, baseado no tripé pecuária/colonização/infraestrutura terrestre. A estrada não terminou de ser construída, e deve passivos a inúmeros povos indígenas e tradicionais.

Segundo Luciene Pohl, assessora do Programa Povos Indígenas do IEB, o desafio de povos indígenas e comunidades tradicionais impactados por grandes obras está em construir uma rede que ultrapasse o âmbito local e as esferas de interlocução limitadas ao licenciamento. “Essas comunidades são as mais fortemente atingidas pelos impactos sociais e ambientais decorrentes de obras tais como a Usina Tabajara (RO) e as rodovias BR 230, 317 e 319, que são construídas sem que aqueles grupos sociais tenham sido consultados. Promover esse diálogo é dar mais um passo no sentido de possibilitar um maior protagonismo dos povos extrativistas, indígenas, ribeirinhos da região com consequente fortalecimento daqueles territórios”. afirmou.

O sul do Amazonas caracteriza-se por ser um “mosaico”, com suas 44 terras indígenas reconhecidas oficialmente, além das 12 unidades de conservação federais, configurando um quadro de 4.453.559 hectares de áreas protegidas.

GESTÃO INTEGRADA

Realizado pelo IEB, o Seminário é uma das atividades previstas no Plano de Ação de Gestão Integrada. O plano foi construído em 2016 como resultado de um processo de capacitação continuada que reuniu lideranças indígenas, extrativistas e gestores de Unidades de Conservação e Terras Indígenas do sul do Amazonas. A iniciativa do Plano tem apoio da Fundação Betty e Gordon Moore e parceria com a FUNAI e ICMBio.

“Ainda no começo, a proposta de sentar indígena com extrativista para discutir uma “gestão integrada” causava receio para nós, povos indígenas, porque tentaram nos “integrar” à sociedade brasileira para anular as nossas diferenças culturais. Mas logo entendemos que o intuito dessa integração era diferente que aquele promovido pelos militares. O desafio foi aceito e hoje estamos aqui, formando uma rede que quer se qualificar e lutar junto em favor dos nossos direitos e conquistas” – relembra Zé Bajaga, cacique da Terra Indígena Caititu, também impactada pela rodovia Transamazônica, e coordenador técnico local da FUNAI/CTL Lábrea.

“Como compor uma rede com autonomia? Quero parabenizar o IEB por promover espaços como esse. E parabenizar esse time que está aqui pensando e fazendo junto, levando informações para as bases, formando uma rede de atores que representam bem a diversidade dos contextos amazônicos. É assim que a Amazônia funciona.  É uma região complexa, muito pouco compreendida pelo Estado Brasileiro. Daí a importância de qualificar os atores locais e, acima de tudo, ouvi-los com atenção. É muito interessante poder reunir lideranças capacitadas, diversas organizações não governamentais que muitas vezes têm dificuldade de sentar junto e ainda contar com a presença de instâncias governamentais” – declarou Danicley Saraiva de Aguiar, do Greenpeace.

Danicley também apresentou ao público do Seminário o planejamento para a instalação de terminais graneleiros na Amazônia, a exemplo do porto que foi construído na cidade de Humaitá. Este tipo de obra corrobora a tese de que a fronteira agrícola está em franca expansão rumo ao sul do Amazonas e este processo será intensificado com a construção e pavimentação de rodovias.

Estavam reunidos representantes das associações extrativistas ATAMP, ASMOCuniã, AMARI, APREA, APADRIT, APAVIL e CNS, e associações indígenas APITIPRE, APITEM, APIJ, AMARI, OPIAJ, OPIAJBAM, OPIAM e UMIAB.

O Seminário contou com a participação de representantes da FUNAI e ICMBio que apresentaram as ferramentas, normativas e procedimentos de licenciamento ambiental no âmbito de cada órgão. Organizações da sociedade civil como CTI, APIB e Greenpeace também contribuíram no debate sobre os processos de licenciamento. O Ministério Púbico Federal do Amazonas abordou as perspectivas de implementação Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no que toca aos processos de consulta das comunidades sobre grandes obras de infraestrutura.

“Nós, populações tradicionais somos os guardiões de uma fonte de vida de extrema importância para a nação brasileira e mesmo para o mundo. Não podemos viver sem a floresta em pé e já se sabe que a floresta também depende da nossa proteção para continuar a existir. O que estamos percebendo com todo esse conteúdo discutido nesses espaços é que nós, extrativistas, não contamos com apoio direto de uma instituição governamental que tenha uma jurisdição específica em defesa dos povos extrativistas e acabamos sofrendo com políticas públicas não adequadas para a nossa realidade. O ICMbio é nosso parceiro, mas sua missão é cuidar das questões ambientais”, argumentou Irismar Monteiro Duarte, liderança extrativista da Resex Ituxi.

No caso de obras planejadas pelo governo federal, o órgão licenciador é o IBAMA. O ICMbio e a Funai são “intervenientes” e são chamados para dar pareceres ao longo do processo de licenciamento.

A possibilidade de as lideranças participarem de forma qualificada do licenciamento implica em conhecer e refletir sobre processos mais amplos tais como aqueles que dizem respeito ao planejamento de infraestrutura de governo e ao financiamento públicos ou privados de obras. Esta é uma das dificuldades que tais populações locais sofrem quando tem a intenção de interagir e interferir nos processos que as afetam. “É preciso muito embate para fazer empate”, destacou a liderança extrativista Solange Gonçalves Ghira Borges da Resex Arapixi, localizada em Boca do Acre.

A Convenção 169 da OIT estabelece que as comunidades indígenas e extrativistas devem ter participação mediante processos de consulta livre, previa e informada em todos os atos que interfiram em suas vidas, conforme destacou Fernando Soave, procurador do MPF no Amazonas. Apesar de todas as dificuldades em adotar tal direito, o que se tem nos dias atuais são protocolos de consulta que cada povo ou comunidade elabora ao tentar se contrapor a iniciativas que possam interferir nos seus modelos próprios de desenvolvimento. Mas isso não ocorre sem dificuldades tal como destacou Dinaman Tuxa, liderança indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que relatou como o seu povo enfrentou, junto a Corte Interamericana de Diretos Humanos, o desafio de ser ouvido depois dos fortes impactos causadas pela instalação das Usinas Hidrelétricas no rio São Francisco.